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Dicionário mariológico - Bodas de Caná 

Evangelho de João: uma mariologia simbólica 

Foto: Pixabay

Se tomarmos como ponto de partida o texto bíblico mais antigo que se refere a Maria (Gl 4,4) e irmos até João (Jo 19,25-27) vamos encontrar no corpo dos textos do Novo Testamento uma crescente compreensão do mistério de Deus em sua relação com a Mãe do Senhor.

Se na Carta de São Paulo aos Gálatas sequer seu nome aparece, no Evangelho de João encontramos a imagem da Virgem Maria para além da sua atuação situada na maternidade de Jesus, pois ela representa todo o Israel fiel, em sua máxima disposição para cumprir as promessas do Senhor1.

Por isso, em João alcançamos uma “alta mariologia” ou uma “mariologia simbólica”2, pois, sem perder aquilo que lhe é singular (a maternidade do Verbo), Maria personifica todo o povo santo de Deus. 

Essa “mariologia simbólica” fica muito evidente nas Bodas de Caná, em que a cena bíblica transborda em simbologia. Tais núpcias está relacionada com as “núpcias messiânicas”, as “núpcias do cordeiro” (Ap 19,7.9)3, em que uma nova fase da salvação atinge seu cume: o noivo, Jesus, está no meio de nós, para nos unir de modo definitivo a ele. 

“Não tem vinho” (Jo 2,3)

A nova fase da salvação é percebida pela mãe de Jesus que, atenta, nota a falta de um elemento de total importância naquela cena, ao dizer: “Não têm vinho!” (Jo 2,3).

Foto: Pixabay

Mais que dizer que o vinho acabou, ela diz que nunca houve vinho, ou seja, nunca houve núpcias. Isso porque o vinho é o símbolo do amor entre os esposos (Ct 1,2; 7,10; 8,2), logo, núpcias sem vinho é sinal de matrimônio sem amor e matrimônio sem amor é ausente de alegria (outra expressão ligada ao vinho, como vemos em Am 9,13-14; Os 14,7 e Jr 31,12)4

Com Jesus, o Esposo, isso precisa ser mudado radicalmente. É quando encontramos a surpreendente imagem das talhas com águas destinadas para a purificação religiosa, segundo os costumes farisaicos.

Tais talhas continham uma quantidade de água que variava entre 500 a 700 litros. Tanto a pedra das talhas quanto a quantidade de água representam o peso da religião ao qual o povo deve se submeter, inculcando um sentido de indignidade nas pessoas e aprisionando-as nas cadeias da culpa e recorrentes ritos de perdão5.

Foto: Freepik

Essa é a visão de Maria apresentada por João. Ela percebe que: “Não há vinho”, mas não diz: “Não temos mais vinhos”, estando ciente de que Jesus é o único capaz de substituir uma expressão de fé incapaz de alcançar o ser humano no seu anseio de vida para a plenitude de viver o que o melhor vinho proporciona. Esse foi o sinal de Jesus em Caná da Galileia (Jo 2,11), um transbordamento de vida e salvação que aponta para “a hora”, a cruz do Salvador

 Em todos os sentidos da palavra, é “a hora”, a única hora do universo, o momento mais importante, o único que merece ser chamado desse modo. Aos olhos de João, essa é a hora esperada por toda a História anterior, a hora incrível, pois a História não tem nem centro nem periferia e todos os momentos são iguais6

A mãe de Jesus está atenta à grandeza da novidade da qual seu filho é o protagonista sem igual. Por isso vai a Jesus para dizer da falta do vinho-amor como também procura os “servidores” para dizer de modo solene: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). 

Diaconisas e diáconos de um novo tempo 

Segundo o exegeta Alberto Maggi, o evangelista utiliza o termo grego diáconos para designar os que estavam servindo naquela festa e não o termo servos/serviçais (em grego doulos), ou seja, o evangelista fala daqueles que livremente e por amor servem aos outros, característica específica dos verdadeiros discípulos do Senhor (Jo 12,26)7.

Se tempos novos pedem posturas novas, a novidade inaugurada por Jesus pede discípulos, amigos do noivo, que se coloquem a serviço de algo que foi visto por Maria, uma mulher capaz de enxergar longe. 

Assim, no Evangelho de João, Maria é uma mulher de visão. Ela vê que um sistema religioso que não oferece liberdade ao ser humano é incapaz de qualquer tipo de salvação e que em Jesus reside a resposta para todos os anseios da humanidade.

O que Maria é se converte em convite a sermos também. Pessoas de visão fundada no Espírito Santo, atentas à novidade operada por Jesus na sua encarnação redentora na história e capazes de viver uma autêntica expressão cristã que se configura em vida e liberdade para todas as pessoas. 

Frei Jonas Nogueira da Costa, OFM. Doutor em Teologia Sistemática (pesquisa em Mariologia) pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Vice-presidente da Associação Brasileira de Mariologia; membro da Equipe de Assessoria Teológica da Academia Marial de Aparecida e professor no curso de pós-graduação em Mariologia da Faculdade Dehoniana (Taubaté/SP). Contato: [email protected]

1MAGGI, Alberto. Antes ainda de Nossa Senhora. Maria segundo os Evangelhos. São Paulo: Paulus, 2024, p. 94.
2BOFF, Clodovis. Introdução à mariologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 33.  
3LIBANIO, João Batista. Linguagens sobre Jesus. Linguagens narrativas e exegética moderna. Vol. 2. São Paulo: Paulus, 2012, p. 152.
4MAGGI, Alberto. A loucura de Deus. O Cristo de João. São Paulo: Paulus, 2013, p. 30.
5MAGGI, Antes ainda de Nossa Senhora, p. 96; CASTILLO, José M. O Evangelho marginalizado. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 81-82.
6COMBLIN, José. A oração de Jesus. 2ed. São Paulo: Paulus, 2010, p. 77.
7MAGGI, Antes ainda de Nossa Senhora, p. 95-96.

 

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