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Maria sempre aponta para Jesus no mistério do Pai e do Espírito Santo. Podemos considerar isso uma regra básica da mariologia, uma vez que não encontramos na Mãe do Senhor uma autorreferencialidade narcísica que a coloca acima de toda a humanidade e “um pouco abaixo” das Pessoas divinas da Trindade. O que podemos dizer é que, com seu Filho, ela representa o que existe de mais excelente na humanidade, sendo escolhida para ser a Mãe do Verbo encarnado.
Dogma cristológico-mariano
A compreensão dessa singular maternidade, plasmada pela graça do Espírito Santo, é a primeira formulação dogmática que envolve diretamente Maria, por isso, é considerada um dogma mariano. Tal compreensão tem seu fundamento nas Escrituras, que nos dizem com toda a clareza que Maria é a mãe de Jesus.
Contudo, o processo de compreensão dessa verdade de fé nos mostra que, mais do que um dogma estritamente mariano, estamos diante de um dogma cristológico-mariano, isso porque para dizer que Maria é a Mãe do Senhor, precisamos confessar Jesus como o Senhor, como alguém que participa de modo filial da divindade do Pai de modo único e foi concebido virginalmente na nossa história no seio de uma mulher.
Mas, o que é um dogma?
A maternidade divina de Maria é uma verdade tão cara e fundamental para o cristianismo que foi assumida como um dogma de nossa fé. Mas vale a pena uma breve revisão do termo “dogma”, isso porque ele foi lançado em dois extremos que não nos permite alcançar sua beleza e o direcionamento ao mais profundo do mistério de Deus.
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De um lado, dogma foi considerado um “bloco monolítico” que já disse tudo o que tinha para dizer e cabe-nos aceitar e repetir tal qual foi formulado. Essa posição se esquiva da compreensão de que a humanidade progride por meio de sua racionalidade e com isso a linguagem muda.
Mesmo que o dogma seja irreformável em sua essência, ele precisa ser dito de modo contextualizado e seja capaz de dialogar com as questões contemporâneas.
A outra face oposta dessa compreensão é a que considera o dogma como algo do passado e que representa apenas uma literatura antiga, constrangedora inclusive diante dum grupo de acadêmicos, que não encontram razão para se dedicar a algo que a ninguém mais interessa. Se houve de um lado uma maximização do dogma, agora é a minimização que também não deixa o “sempre novo”, que paira por gerações de cristãos, abrir novos caminhos da vivência da fé.
Desse modo, a posição mais equilibrada de dogma é a que o considera
um ato de interpretação da palavra de Deus consignada na Escritura. Não pretende fazer-lhe acréscimos, ou dizer outra coisa, mas traduzir em linguagens culturais novas, em função de questões novas, o que era dito1.
Assim, o dogma na vida da Igreja é uma expressão da centralidade da Palavra de Deus sempre atualizada, não repetindo meramente o que já foi acolhido como Revelação divina dada nos textos escriturísticos, mas projetando a Palavra salvífica em outras traduções necessárias diante das novas perguntas fundamentais da fé.
A humanidade e a divindade de Jesus
Dentre essas perguntas fundamentais estava a compreensão sobre como se relaciona a humanidade e a divindade em Jesus. A Igreja confessa essas duas dimensões no Senhor, mas no século V foi necessário que se compreendesse como essas duas dimensões se relacionam num único ser humano, o Senhor Jesus.
Dizer isso implica o problema do vocabulário a ser utilizado. O que nos foi transmitido, mesmo que escrito em grego, guardava uma mentalidade semítica presente nos textos do Novo Testamento.
Diante de novas perguntas feitas, foi necessário que se conservasse o teor da fé conservado pela Tradição recebida dos Apóstolos, mas com uma mentalidade grega, o que implicou também um novo vocabulário, que já foi utilizado no Concílio de Niceia (325).
Foi devido às dificuldades com um novo vocabulário para entender a fé, dos diferentes acentos dados à pessoa de Jesus em sua humanidade e divindade e, infelizmente, uma disputa de poder entre Igrejas, que se impôs a questão de esclarecer um termo, que falava de Maria, mas a causa da discussão era sobre Jesus: podemos dizer que Maria é “Mãe de Deus” (Theotokos)?
Theotokos
Para resolver a questão, o imperador Teodósio II, com o consentimento do Papa Celestino I, convocou, na cidade de Éfeso, um concílio, que ocorreu no ano de 431.
Nesse concílio, refutou-se a ideia de Nestório, bispo de Constantinopla, que negava a expressão Theotokos a Maria. Isso porque ela teria concebido virginalmente um ser humano assumido como Deus, uma vez que o ser humano, não sendo divino, não pode gerar divindade. Dando a palavra a Nestório, ele diz que
Perguntamos-vos: Maria pode ser chamada Mãe de Deus? Mas Deus tem uma mãe? Necessitaríamos agora admitir o paganismo que fala das mães dos deuses. (...) Não, Maria não gerou Deus, a criatura não gerou o Criador, mas um homem que é instrumento da divindade. O Espírito Santo não introduziu o Logos, mas criou um templo onde deveria habitar. (...) Aquele que foi formado no seio de Maria não é Deus mesmo, mas Deus o assume e, por causa daquele que o assume, o chamamos também de Deus assumido”2.
Tal pensamento foi refutado por Cirilo, bispo de Alexandria, com o conceito de união hipostática, que, em grandes linhas, significa que a divindade e a humanidade no Verbo que se encarnou no seio de Maria nunca estiveram separadas, mas unidas ontologicamente, de modo que a pessoa que Maria concebeu, desde o primeiro instante é humana e divina. Logo, pode-se dizer que Maria gerou Deus em seu ventre, mesmo não sendo a causa da divindade de seu filho.
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O argumento da união hipostática tornou-se uma chave de compreensão cristológica fundamental para a Igreja, pois nos leva a confessar que
Jesus Cristo é redentor pela união hipostática: como homem, de fato, pode obedecer, sofrer e morrer; como homem, de fato, pode obedecer, sofrer e morrer; como Deus, ele pode salvar, comunicando-nos o que lhe é próprio3.
Isso nos leva a concluir que o argumento da maternidade divina de Maria não é uma mera informação do modo como o Senhor foi concebido, mas é visceral a todo o mistério da salvação.
Maria: “chave do mistério”
Desse modo, Maria é a “chave do mistério”. Ela não é o núcleo da fé cristã, mas sem essa “chave” não se pode entrar no mistério da encarnação do Verbo e alcançar minimamente a grandeza de um Deus tão apaixonado pelo ser humano que quis que seu Unigênito fosse um de nós, “um conosco”, para que tudo o que é genuinamente humano seja assumido como divino.
Frei Jonas Nogueira da Costa, OFM. Doutor em Teologia Sistemática (pesquisa em Mariologia) pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Vice-presidente da Associação Brasileira de Mariologia. Contato: [email protected]
1SESBOÜÉ, B. A divindade do Filho e do Espírito Santo (século IV). In: SESBOÜÉ, Bernard (dir.); WOLINSKI, J. O Deus da salvação (séculos I – VIII). 3ed. São Paulo: Loyola, 2015, p. 216.
2NESTÓRIO, [...]. Apud: BULGÁKOV, S. Il roveto ardente. Aspetti della venerazione ortodossa della Madre di Dio. Cinisello Balsano: San Paolo, 1998, p. 8.
3KELLI, Mervat. Maria come Madre di Dio nell’oriente cristiano. Teologia, poesia, dogma, liturgia, icone. In: VALERIO, Adriana; KELLI, Mervat; GROCHOWINA, Nicole. La Madre di Dio. Maria nelle confessioi cristiane. Cinisello Balsano: Edizioni San Paolo, 2022, p. 133.