Foto: Vatican Media
O Papa Francisco deixa um legado de coragem, misericórdia e verdade, sendo uma presença afetiva e profética em um mundo ferido por hipocrisia e indiferença.
"A figura do Papa sempre foi — e continuará sendo — uma voz escutada no mundo todo. Mas Francisco fez mais: ele desceu do trono e caminhou conosco."
Os legados do Papa Francisco são muitos. Poderíamos destacar sua preocupação com o meio ambiente, expressa de forma contundente na encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado com a casa comum. Podemos lembrar que foi ele quem defendeu com coragem a inserção das mulheres em cargos de decisão na Igreja, sendo o primeiro a nomear uma mulher para um dicastério no Vaticano. Também foi sensível às diversidades — raciais, sexuais, culturais — e reiterou a importância de uma sociedade verdadeiramente saudável cuidar de seus dois extremos vitais: crianças e idosos.
Nada mais atual. Francisco foi — e é — um profeta contemporâneo.
Mas, entre tantos legados, há um que merece ênfase especial: Francisco foi um entre nós. Em um mundo onde imperam a mentira, o cinismo, o narcisismo e a indiferença, ele trouxe a verdade. Verdade vivida, não proclamada. Um Papa autêntico, que se mostrou humano, real. Denunciou as incoerências e as posturas hipócritas da sociedade, lembrando que o verdadeiro cristianismo não se fundamenta em dogmas de exclusão, mas na misericórdia e no perdão — e não na vingança e no ódio.
Francisco propôs uma “Igreja em saída”, capaz de abandonar o egocentrismo institucional para se abrir ao diálogo e à escuta das dores do mundo. Insistiu para que a Igreja compreendesse as transformações do século XXI, olhasse com atenção e ternura para a juventude, seus anseios, seus medos, sua busca por sentido. Comunicou-se com afeto e clareza, nunca se negando a uma conversa com jornalistas, sendo ele mesmo o entusiasta da canonização do primeiro “santo da internet”, o jovem Carlo Acutis.
Francisco tocou nas feridas — da sociedade e da própria Igreja. Não teve medo. O medo paralisante do século XXI não encontrou morada em sua alma argentina. Ele não temeu o povo, não recuou diante das multidões. E, ainda mais corajoso, não se esquivou de tocar nas chagas internas da Igreja: enfrentou com firmeza os escândalos de abusos sexuais e as crises financeiras do Vaticano. Foi um Papa da coragem, que continuou quando muitos se calariam.
Francisco foi o Papa do afeto. Do toque, do abraço, do sorriso. Olhava o mundo com leveza, mas com seriedade; com doçura, mas sem jamais fugir da realidade. Sabia ser terno sem ser ingênuo.
A figura do Papa sempre teve importância global, mas Francisco imprimiu um novo modo de presença: ele abdicou do poder e escolheu a humanidade. Não exerceu o gozo de quem se senta num trono, mas escolheu estar ao lado dos pobres, dos imigrantes, dos esquecidos. Deixou-se tocar pelas periferias — geográficas, sociais e existenciais. Foi um Papa verdadeiro, presente, possível.
Às vezes, imagino o encontro entre dois jesuítas que representaram verdadeiramente o Cristo na terra: Dom Luciano Mendes de Almeida e Papa Francisco. Que cena seria essa! Tenho certeza de que Santo Inácio de Loyola, pai espiritual de ambos, se encheria de orgulho ao vê-los. Coragem, cuidado, humildade, verdade — essas virtudes uniram o arcebispo primaz de Minas ao sucessor de Pedro.
Francisco nos ensinou que, mesmo nas noites mais escuras, a vida vale a pena.
René Dentz é professor do Departamento de Filosofia da PUC-Minas, onde também é coordenador da Pós-Graduação em Teologia e Psicanálise, psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE e Pós-Doutorado em Teologia pela Université de Fribourg, na Suíça. Autor do livro “Perdão: diálogos entre a filosofia e a teologia” (Paulinas, 2024).