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A reflexão sobre a inteligência artificial (IA) e a consciência nos desafia a reconsiderar as fronteiras entre o humano e o tecnológico. Com o avanço exponencial das tecnologias de IA, surgem questões fundamentais sobre o que significa ser consciente e como a tecnologia pode influenciar ou replicar aspectos da consciência humana.
O Papa Francisco, em suas mensagens sobre tecnologia, sublinha a necessidade de harmonizar o progresso tecnológico com a dignidade humana e os valores éticos. Este equilíbrio é crucial ao abordarmos o potencial da IA para transformar sociedades, especialmente em termos de saúde e educação, ao mesmo tempo que enfrentamos riscos significativos como a ampliação das desigualdades sociais e a manipulação de informações.
Neste contexto, o desejo mimético descrito por René Girard pode ser ampliado pela IA, que, ao modelar e potencializar desejos humanos, pode intensificar rivalidades miméticas em escala global. Esta perspectiva sugere uma reflexão sobre como a tecnologia pode não apenas refletir, mas também alterar a dinâmica social e pessoal. O discurso de ódio pode encontrar um caminho aberto.
Em outra perspectiva, Thomas Fuchs, teólogo e filósofo alemão, nos lembra da essencialidade da corporeidade e intersubjetividade na consciência humana.
A IA, por mais avançada que seja, carece da capacidade de experimentar a vida de maneira integral, limitando-se a processos computacionais que não englobam a totalidade da experiência humana, que inclui complexidades emocionais e éticas. A IA não lida com o imprevisto, com o caótico e o aleatório, muito menos tira deles sua criatividade. Assim, fica uma pergunta: se a IA não pode estar no mundo, ela teria pressupostos éticos?
Memória e identidade
Paul Ricoeur, um filósofo fundamental na discussão sobre memória e identidade, propõe uma análise da memória como um fenômeno dinâmico que está intrinsecamente ligado à nossa capacidade de narrativa e ao nosso senso de tempo.
Para Ricoeur, a memória não é apenas um simples repositório de dados, mas um espaço de interpretação, onde o passado é constantemente reavaliado à luz do presente. Ele distingue entre a memória "feliz" e a memória traumática, onde conflitos e traumas podem distorcer nossa percepção do passado.
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A concepção de memória em Ricoeur destaca a importância do reconhecimento, não apenas de eventos, mas de "si mesmo" no tempo. Essa perspectiva é crucial para entender a limitação da IA em replicar a verdadeira natureza da memória humana.
A IA pode armazenar e recuperar informações, mas falta-lhe a capacidade de engajar-se com essas memórias de uma maneira que forme uma narrativa coerente e significativa que contribua para a identidade pessoal ou coletiva.
Mundo-da-vida
Após as reflexões de Fuchs sobre corporeidade, é interessante recordarmos da fenomenologia do mundo da vida (Lebenswelt), como elaborada por Edmund Husserl e outros.
O mundo da vida refere-se à experiência pré-reflexiva do mundo fundamental para a consciência humana. Este conceito sublinha como percebemos o mundo de maneira direta e imediata, através de nossa vivência corpórea e intersubjetiva.
A IA, no entanto, opera em um nível de abstração que carece dessa imersão no mundo da vida; ela não participa do mundo como um ser corpóreo e intersubjetivo, mas como uma entidade que processa dados de fora dessa experiência vivencial.
A fenomenologia nos ensina que a consciência não é apenas sobre processamento de informações, mas sobre a experiência imediata e significativa do mundo.
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A consciência humana é situada; ela emerge não só do que pensamos, mas de como nos movemos, sentimos e interagimos com os outros no mundo. Essa dimensão da experiência é algo que a IA atual e futura pode imitar em certas operações, mas não pode replicar em sua totalidade.
Ao discutirmos a integração da IA na sociedade, é imperativo que consideremos a governança ética e uma regulamentação consciente, assegurando que o desenvolvimento da tecnologia promova o bem-estar humano e respeite a dignidade intrínseca da vida.
As reflexões do Papa Francisco e os insights de pensadores como Girard, Fuchs e Ricoeur formam uma base crítica para o diálogo sobre o futuro da IA, enfatizando a necessidade de uma abordagem que respeite e enriqueça a experiência humana, em vez de diminuí-la.
Enquanto exploramos os limites e possibilidades da IA, devemos manter um compromisso inabalável com os valores éticos que governam o uso da tecnologia, assegurando que ela sirva à humanidade de maneiras que fomentem a justiça, a dignidade e a liberdade humanas, ao invés de se tornar uma ferramenta de desumanização ou controle.
A integração consciente da tecnologia na sociedade deve sempre ser guiada por uma reflexão responsável sobre seu impacto na condição humana, equilibrando cuidadosamente os benefícios tecnológicos com os imperativos éticos e sociais.
René Dentz é professor do Departamento de Filosofia da PUC-Minas, onde também é coordenador da Pós-Graduação em Teologia e Psicanálise, psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE e Pós-Doutorado em Teologia pela Université de Fribourg, na Suíça. Autor do livro “Perdão: diálogos entre a filosofia e a teologia” (Paulinas, 2024).