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Para apresentar e relevar alguns pontos específicos na trajetória da Igreja e os meios de comunicação social no Brasil, a partir do Concílio Vaticano II, delineamos rapidamente a recepção que a comunicação, em si, teve na então Assembleia universal, que reuniu representantes de Igrejas de todos os continentes.
Embora suas tendências e dominação pelo pensamento europeu, especialmente da Europa central, o Vaticano II constituiu o mais importante evento da Igreja Católica no século passado. Realizado de outubro de 1962 a dezembro de 1965, foi o vigésimo primeiro concílio ecumênico depois de um intervalo de 92 anos (o Vaticano I ocorreu em 1870).
Por ter se caracterizado como uma assembleia da cúpula eclesiástica para deliberar sobre assuntos de doutrina e da missão da Igreja no mundo, o Vaticano II foi decisivo na tentativa de a Igreja reconhecer e entender o mundo no qual vivemos, com suas expectativas, seus anseios e suas características. Foi assim que o documento Gaudium et Spes (Sobre a Igreja no Mundo de hoje) chamou a atenção sobre a nova postura da Igreja pela justiça e pela transformação da sociedade como uma dimensão fundamental da evangelização.
Enquanto os resultados do Concílio Vaticano II deixaram, de modo geral, a maioria dos católicos satisfeitos, ele também tornou-se objeto de contestação.
Os conservadores censuraram o concílio por suas tendências ecumênicas e modernistas, e insistiam na continuidade do passado. Por outro lado, os progressistas queixaram-se de que, embora o concílio tenha feito algum progresso, falhou ao tratar das estruturas hierárquicas da Igreja.
E argumentaram que o sentido real do concílio está nas suas inovações, aplaudindo a decisão do Vaticano II de romper com o juridicismo, o clericalismo e o triunfalismo dos tempos pré-conciliares. Para eles, isto significou o começo de um “catolicismo mais liberal e mais saudável”.
Detectar as tendências da Igreja nos anos que se seguiram ao Vaticano II é de grande importância, embora não objeto específico da presente reflexão.
Entretanto, é conveniente acenar que, enquanto João Paulo II afirmasse que o Vaticano II continua sendo o acontecimento fundamental da Igreja moderna, a apreciação do concílio pelos diversos países revela uma diversidade de opiniões.
Haja vista os Sínodos dos bispos, nos vários continentes. E dentro da reflexão dos Sínodos, o lugar da comunicação: “minúscula”, ou “tradicional”.
Inter Mirifica – aceitação oficial da Igreja dos meios de comunicação para desenvolver um trabalho pastoral
O decreto Inter Mirifica é o segundo dos dezesseis documentos publicados pelo Vaticano II. Aprovado a 4 de dezembro de 1963, assinala a primeira vez que um concílio geral da Igreja se volta para a questão da comunicação. De fato, este documento tem grande importância, muito mais pela sua forma do que por seu conteúdo.
Pela primeira vez , um documento universal da Igreja assegura a obrigação e o direito de ela utilizar os instrumentos de comunicação social. Além disso, o Inter Mirifica também apresenta a primeira orientação geral da Igreja para o clero e para os leigos sobre o emprego dos meios de comunicação social.
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Havia agora uma posição oficial da Igreja sobre o assunto: “A Igreja Católica, tendo sido constituída por Cristo Nosso Senhor, a fim de levar a salvação a todos os homens e, por isso, impelida pela necessidade de evangelizar, considera como sua obrigação pregar a mensagem de salvação, também com o recurso dos instrumentos de comunicação social, e ensinar aos homens seu correto uso.
Portanto, pertence à Igreja o direito natural de empregar e possuir toda sorte desses instrumentos, enquanto necessários e úteis à educação cristã e a toda a sua obra de salvação das almas”. (IM 3).
O documento refere-se aos instrumentos de comunicação, tais como imprensa, cinema, rádio, televisão e outros meios semelhantes, que também podem ser propriamente classificados como meios de comunicação social (IM 1).
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Ao enumerar esses meios, no entanto, o decreto refere-se ao que fora comumente classificado como meio de comunicação de massa até aquela data. Nenhuma atenção é dada, no documento, às forças que articulam os meios de comunicação: por exemplo, anúncios, marketing, relações públicas e propaganda.
Com a finalidade de demonstrar quanto e como o tema comunicação se posicionava naquele período histórico da Igreja, e qual era a sua compreensão sobre tal assunto, faz-se necessário observar que o decreto Inter Mirifica foi preparado antes da primeira sessão do Vaticano II pelo Secretariado Preparatório para a Imprensa e Espetáculos (novembro de 1960 a maio de 1962). O esboço do documento foi aprovado pela Comissão Preparatória Central do Concílio.
Posteriormente, em novembro de 1962, o documento foi debatido na primeira sessão do concílio e o esquema, aprovado, mas o texto foi considerado muito vasto.
A drástica redução do texto é penetrada de profundas conotações e deixa margem para as mais variadas conclusões. Durante o primeiro período conciliar, o texto de 114 artigos foi reduzido para 24 artigos e submetido novamente à assembleia em novembro de 1963.
A apuração dos votos registrou 1598 “sim” contra “503 “não”. Entretanto, ao contrário de demonstrar que isto seria um “ganho folgado”, é preciso relevar que o Inter Mirifica foi o documento do Vaticano II aprovado com o maior número de votos contrários.
O alto nível de oposição ao decreto, segundo o estudioso Baragli, foi atribuído à publicação simultânea de várias críticas ao documento, feitas por jornalistas em diversos jornais influentes da Europa e dos Estados Unidos.
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Houve três correntes de crítica: uma francesa, outra Americana e uma terceira alemã. A crítica francesa se opôs ao esquema do decreto durante a assembleia dos bispos franceses. Suas críticas tiveram eco imediato em R. Laurentin, no Le Figaro; H. Fesquet, no Le Monde; e A. Wenger e N. Copin, na La Croix. Este último escreveu: “O esquema carece de conteúdo teológico, de profundidade filosófica e de fundamento sociológico”.
Naturalmente que, sempre que se perde de vista a interdisciplinaridade da comunicação, a tentação é compreendê-la ou reduzi-la de acordo com esta ou aquela disciplina. Também atualmente poderia-se aprofundar muito o diálogo entre comunicação e teologia, se trilharmos caminhos desprovidos de reduções e preconceitos.
A segunda corrente, Americana, iniciou sua ação na Agência de Imprensa, US Bishop’s Press Panel, em 14 de novembro de 1963. O que se afirmava era que o documento não haveria de trazer mudanças significativas, uma vez que o texto “não continha posições inovadoras”.
Dizia-se que o documento proclamava oficialmente “um conjunto de pontos previamente afirmados e pensados em nível mais informal”. A surpresa dos jornalistas americanos residia também e especialmente no artigo 12 do decreto, que trata da liberdade de imprensa.
Decididos a fazer com que o documento não fosse aprovado, os jornalistas americanos elaboraram um folheto mimeografado, no qual o esquema era julgado vago e trivial, falando de uma imprensa inexistente, vista apenas como uma exortação pastoral. Chegaram a alertar que o decreto, “assim como está agora” demonstrava à posteridade a incapacidade do Vaticano II de enfrentar os problemas do mundo atual.
A oposição alemã, assinada por 97 padres de diferentes regiões, manifestou-se no 18 de novembro, mediante uma carta dirigida à Décima Comissão Conciliar, responsável pela redação do documento, propondo um novo estudo e um novo esquema.
O grupo alemão também lançou uma circular, que foi distribuída na Praça São Pedro momentos antes da sessão conciliar. A circular se caracterizava pelo pedido aos bispos para optar pelo non placet (não satisfaz) porque o esquema era indigno de figurar entre os decretos conciliares, pois não refletia os anseios do povo e dos entendidos no assunto.
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A manifestação pública dos jornalistas franceses, americanos e alemães teve forte influência sobre os bispos participantes do Vaticano II. Como mencionamos previamente, o Inter Mirtifica foi aprovado com o maior número de votos negativos dado a um documento do Vaticano II.
Ainda que o texto original do Inter Mirifica tenha reduzido de 114 para 24 artigos, o documento foi mais positivo e mais matizado do que os demais documentos pré-conciliares.
Os 24 artigos que compõem o decreto conciliar estão assim divididos: uma breve introdução (2 artigos); o capítulo 1, com 10 artigos destinados à doutrina; o capítulo 2, com 10 artigos referentes à ação pastoral; e os 2 artigos da conclusão.
A introdução utiliza os termos “instrumentos de comunicação social”, preferindo-os a “meios audiovisuais”, técnicas de difusão (expressão usada correntemente na França naquela época), “meios de informação”, “mass media”, ou “mass communications”. Tal preferência baseou-se no fato de que o decreto queria referir-se a todas as tecnologias de comunicação.
Depois, o Vaticano II usou um conceito de tecnologia que não se atenha apenas às técnicas ou à difusão destas, mas incluía os atos humanos decorrentes, que são, no fundo, a principal preocupação da Igreja em seu trabalho pastoral.
Do mesmo modo, a expressão “comunicação social” foi preferida aos termos “mass media” e “mass communications”, que parecem discutíveis e ambíguos por sugerirem a “massificação”, como se esta fosse decorrência inevitável da utilização dos instrumentos de comunicação social.
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A Igreja quis assumir assim uma visão mais otimista da comunicação frente às “questões sociais”. Em outras palavras, quis não apenas abarcar o fator técnico, mas também o aspecto humano e relacional, isto é, o agente que opera as técnicas (e os que o recebem), além da consideração dos instrumentos de comunicação.
Tal intenção foi sem dúvida importante, mas ao longo de sua história e, ainda hoje, a Igreja continua, em grande parte, “presa” ao discurso dos instrumentos, à utilização das técnicas, enquanto o discurso da comunicação já se tornou mais amplo e complexo, incluindo uma gama de variedades e interferências na cultura midiática atual.
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