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Nos parágrafos introdutórios do primeiro capítulo, o Inter Mirifica assegura, pela primeira vez, num documento universal da Igreja, a obrigação e o direito de a Igreja usar os instrumentos de comunicação social (IM 3).
A Igreja Católica foi encarregada por Jesus Cristo de trazer a salvação para proclamar o Evangelho. Consequentemente, ela julga que seja parte de seu dever pregar a Boa Nova da redenção com o auxílio dos instrumentos de comunicação social.
Por essa razão, a Igreja reivindica, como direito inato, o uso e a posse de todos os instrumentos desse gênero, que são necessários e úteis para a formação cristã e para qualquer atividade empreendida em favor da salvação do homem (IM 3).
Houve surpresa por parte de alguns críticos, como J. Vieujean, com o fato de que um documento conciliar começasse por afirmar os direitos da Igreja no uso dos instrumentos de comunicação.
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Entretanto, é o próprio E. Baragli quem argumenta que, já que o primeiro capítulo abordava as premissas da doutrina da Igreja, esse era o lugar ideal no documento para tal afirmação. Tratava-se de uma imposição lógica, concernente à própria estrutura do documento. Segundo Baragli, a ênfase deveria ser colocada em “direito inato (nativum).
Portanto, isto não deve ser entendido como direito de posse, mas como parte da missão da Igreja de educar e de contribuir para o desenvolvimento da humanidade.
A última, mas não menos importante razão para tal afirmação, era o fato de o direito nato da Igreja ao uso e à posse de todas as tecnologias de comunicação ter sido negado em vários países sob regimes totalitários.
A maior contribuição do Inter Mirifica, no entanto, foi sua assertiva sobre o direito de informação:
É intrínseco à sociedade humana o direito à informação sobre aqueles assuntos que interessam aos homens e às mulheres, quer tomados individualmente, quer reunidos em sociedade, conforme as condições de cada um (IM 5).
Considerando provavelmente como a mais importante declaração do documento, este trecho demonstra que o direito à informação foi visto pela Igreja não como um objeto de interesses comerciais, mas como um bem social.
Dezessete anos depois o Relatório MacBride – Many voices, one world: communication and society today and tomorrow (Unesco, 1980) (Muitas vozes, um só mundo: comunicação e Sociedade agora e no futuro) iria além do “direito à informação” ao defender o “direito à comunicação”.
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A comunicação, atualmente, é material de direitos humanos. Mas é interpretada cada vez mais como um direito à comunicação, indo além do direito de receber comunicação ou de ter acesso à informação (MacBride 172).
O primeiro capítulo do Inter Mirifica também aborda temas como a opinião pública, já considerada anteriormente por Pio XII. E dirige-se ao público em geral, não apenas ao que está ativamente envolvido com os meios de comunicação, mas também ao receptor das mensagens.
O artigo 12 foi um dos mais polêmicos: analisa o dever da autoridade civil de defender e tutelar uma verdadeira e justa liberdade de informação.
Este artigo foi interpretado, especialmente por alguns jornalistas americanos, como sendo contra a liberdade de imprensa. Realmente, o Inter Mirifica justifica a interferência do Estado, a fim de proteger a juventude contra a “imprensa e os espetáculos nocivos à sua idade” (IM 12).
Por outro lado, o artigo 12 não é bem claro mesmo em sua língua original (latim), pois fala da civilis auctoritas (autoridade civil), em um lugar, e, mais além, da Publica potestas (poder público). O decreto usa ambos os termos com o mesmo sentido, mas a tradução, em diversas línguas, acabou por reduzi-los à “sociedade civil”.
No entanto, atribuir direitos e deveres à sociedade civil não parece ser a mesma coisa que atribuí-los às autoridades públicas, aos governos.
Fica patente, neste artigo 12, que a Igreja deveria ter feito mais pesquisas no assunto e ter contado com a assessoria de peritos nessa área, mesmo católicos, e de modo a oferecer soluções mais adequadas à proposta de aggiornamento.
Aliás, esta parece ser uma “falha” que permanece na Igreja, salvo certos casos ou posições de algumas Conferências Episcopais.
A comunicação é interdisciplinar, mas tem o seu discurso histórico, sócio-cultural próprio a ser considerado quando a Igreja aborda essa temática, para que não aconteça que a comunicação seja vista somente pelo viés de certas disciplinas que não conhecem ou reduzem a comunicação ao “uso” ou “consumo” existente na sociedade de hoje. A comunicação é bem mais ampla e complexa.
O segundo capítulo do Inter Mirifica volta-se para a ação pastoral da Igreja em relação aos instrumentos de comunicação social. Nesta parte pastoral do decreto, tanto o clero quanto o laicato foram convidados a empregar os instrumentos de comunicação no trabalho pastoral.
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Enumeram-se então diretrizes gerais, referentes à educação católica, à imprensa católica e à criação de secretariados diocesanos, nacionais e internacionais, de comunicação social ligados à Igreja (IM 19-21).
Medidas são sugeridas para que se consagre um dia por ano à instrução do povo no que tange à reflexão, discussão, oração e deveres em relação às questões de comunicação – Dia Mundial das Comunicações (IM 18).
Do mesmo modo, determinou-se a elaboração de uma nova orientação pastoral sobre comunicação, “com a colaboração de peritos de várias nações”, sob a coordenação de um secretariado especial da Santa Sé para a comunicação social (IM 23).
Embora, o papa Paulo VI afirme que o Inter Mirifica não “foi de pouco valor”, os comentaristas concordam com o fato de que, se este decreto tivesse sido discutido mais no final do concílio, após as muitas sessões consagradas à Igreja no mundo moderno e à liberdade religiosas, o texto do Inter Mirifica teria sido particularmente mais enriquecido.
Como querem alguns, o decreto olhou o passado e não o futuro, olhou para dentro e não para fora. Ele não aproveitou as realizações criativas do profissionalismo e da prática secular em comunicação de massa.
Apesar de tantas limitações, é mais do que justo ressaltar os aspectos positivos do Inter Mirifica, dos quais, ao longo de tantas décadas, se transformaram em objeto de atenção por parte da Igreja e se desenvolveram em dimensões maiores ou menores, segundo o interesse e a “inculturação” da Igreja nas mais diversas realidades, incluindo o Brasil.
Em resumo, esse decreto pode ser considerado um divisor de águas em relação à mídia, e não um fim em si mesmo. Foi a primeira vez que um concílio ecumênico da Igreja abordou o assunto da comunicação, dando independência ao tema dentro da Igreja.
Fez também um avanço em relação aos documentos anteriores, ao conferir à sociedade o direito à informação (IM 5), à escolha livre e pessoal, em vez da censura e da proibição (IM 9).
Além de reconhecer que é dever de todos contribuir para a formação das dignas opiniões públicas (IM 8), o decreto assume os instrumentos de comunicação social como indispensáveis para a ação pastoral.
Finalmente, o Inter Mirifica oficializa o Dia Mundial das Comunicações, o único indicado por um concílio da Igreja.
Nos passos do Concílio
Como resposta pastoral ao decreto Inter Mirifica (1963), o papa Paulo VI promulgou em 1971 a instrução Communio et Progressio. Trata-se de um documento pastoral da Igreja que não tem caráter dogmático. Não é uma encíclica, nem um documento conciliar da Igreja como o Inter Mirifica.
A Communio et Progressio foi escrita pela Comissão Pontifícia para os Meios de Comunicação Social. De fato, o nome completo do documento é “Instrução Pastoral para a aplicação do Decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre os Meios de Comunicação Social”.
O documento, marcado pela abertura que caracterizou os documentos do concílio, mas sobretudo a evolução das mentalidades nos anos seguintes, desenvolve-se em 187 artigos e distingue-se do decreto Inter Mirifica particularmente por seu estilo.
Naturalmente que o texto retoma as grandes convicções do Inter Mirifica em relação à mídia, completando-as e apresentando-as de uma forma mais coerente e compreensível. A instrução é relevante, ainda, pelo seu tom e pelo desenvolvimento dos caminhos segundo os quais a ação pastoral deve utilizar os meios de comunicação: a esperança e o otimismo são dominantes e o caráter moralizador e dogmático desaparece.
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Sobressai no documento, como uma de suas características principais, o fato de escutar a sociedade contemporânea, levantando questões sobre a presença das tecnologias da comunicação no mundo circundante: “a Igreja deve saber como reagem nossos contemporâneos, católicos ou não, aos acontecimentos e correntes de pensamento atual” (CP 122).
Uma terceira característica desse documento é que ele considera as peculiaridades de cada veículo de comunicação, inclusive o teatro. Leva em conta a situação psicossocial dos usuários na elaboração de projetos de comunicação para a Igreja, pois “todos esses fatores exigem, por parte da pastoral, uma atenta consideração” (CP 162) e o povo deve ser atendido por um “pessoal bem preparado” (CP 162).
Finalmente, a Communio et Progressio ressalta que a comunicação social é um elemento que articula qualquer atividade da Igreja, reconhecendo a legitimidade da formação da opinião pública dentro dela.
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Este artigo foi publicado na Revista ESPAÇO, Instituto de Estudos Superiores (ITESP) – S. Paulo, dezembro de 2003.