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Francisco e a desinstalação do poder eclesial
É inevitável: diante da iminência de um novo conclave, o mundo olha para Roma como quem assiste ao desenlace de uma peça que, por mais antiga que seja, continua a nos surpreender. O gesto de Francisco, ao escolher um nome que evocava o pobre de Assis e ao se apresentar como bispo de Roma, não foi mero simbolismo. Foi um deslocamento tectônico. Um deslocamento que não agradou a todos — e isso também era inevitável.
Francisco não reformou apenas estruturas — embora o tenha feito. Ele tocou em um nervo eclesial que há muito se acomodava: o da segurança doutrinária como escudo contra a vida.
Fez perguntas que muitos preferiam não ouvir. Questionou o clericalismo, deslocou o centro da Igreja de Roma para as periferias, e sobretudo, devolveu o Evangelho à sua crueza mais bela: aquela que se escreve no chão da história, entre lágrimas, suor e contradições.
O desafio do próximo conclave: conservar ou continuar?
Agora, diante da escolha do próximo Papa, não está em jogo apenas uma continuidade ou ruptura administrativa. Está em disputa a própria alma da Igreja.
Teremos coragem de seguir adiante com a “Igreja em saída” — essa que não tem medo das perguntas do mundo, que não reduz o sofrimento à moralidade e que escuta antes de julgar? Ou nos deixaremos seduzir pela nostalgia de um catolicismo do trono, da batina imaculada, das certezas imunes ao real?
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O risco maior não é a perda de fiéis, tampouco a secularização. O risco é outro: é o da domesticação da esperança. É a tentação de voltar à zona de conforto da “identidade”, entendida não como raiz viva, mas como “bunker” ideológico.
É transformar a Igreja num reduto contra o mundo — e não num espaço de encontro com o mundo. É esquecer que o próprio Cristo foi rejeitado exatamente por escolher o caminho da misericórdia e da escuta.
O próximo Papa não precisa ser “melhor” que Francisco. Mas precisará ser, ao menos, tão desinstalado quanto ele. Precisará carregar nos ombros as dores de um mundo em colapso — ecológico, psíquico, espiritual — e não se refugiar na fantasia de que bastam normas, liturgias ou decretos para salvar a Igreja de sua travessia.
Uma profecia em risco: ternura ou nostalgia?
Francisco nos mostrou que a fragilidade não é inimiga da fé. Que a beleza do Evangelho não está em sua simetria doutrinária, mas em sua capacidade de curar o real. Ele soube colocar-se ao lado dos pobres, das vítimas de abusos, dos rejeitados pela normatividade religiosa. Ele foi, e continua sendo, uma espécie de “graça inquieta” que nos impede de dormir em paz com nossas hipocrisias.
Mas toda graça inquieta provoca resistência. O próximo conclave será, nesse sentido, revelador. Será uma prova de maturidade: se a Igreja aprendeu algo com Francisco ou se apenas o tolerou por tempo suficiente até poder restaurar, sob novas roupagens, os antigos mecanismos de controle e exclusão.
Foto: Vatican Media
Os tempos são sombrios. E não se trata de pessimismo, mas de lucidez. Há um esgotamento visível na linguagem eclesial que insiste em respostas prontas para perguntas que mudaram.
Há uma juventude que não rejeita o sagrado, mas não o encontra nos corredores entulhados de moralismo e medo. Há uma sede de espiritualidade que não será saciada com slogans, mas com comunidades reais, abertas, capazes de partilhar a dor e a beleza de existir.
O novo Papa — sendo fiel ao espírito do Evangelho — não precisará de fortaleza doutrinária, mas de ternura corajosa. Precisará menos de poder e mais de presença. Precisará, sobretudo, continuar lembrando à Igreja que sua missão não é defender-se do mundo, mas lavar-lhe os pés.
Se isso não acontecer, talvez sobreviva a estrutura. Mas perderemos a profecia.
E sem profecia, a Igreja não é mais sinal do Reino. É apenas mais uma instituição que se esqueceu de chorar. Que a Igreja nunca esqueça a poesia do evangelho!
René Dentz é professor do Departamento de Filosofia da PUC-Minas, onde também é coordenador da Pós-Graduação em Teologia e Psicanálise, psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE e Pós-Doutorado em Teologia pela Université de Fribourg, na Suíça. Autor do livro “Perdão: diálogos entre a filosofia e a teologia” (Paulinas, 2024).