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Querido Francisco

Foto: Viviani Moura, fsp

Parece mentira que não veremos mais seu rosto bondoso e tantas vezes brincalhão. Ultimamente andava diferente, mas os olhos não perderam a luz e a vivacidade, expressando o que os lábios só conseguiam fazer com dificuldade: afeto, proximidade e até a proverbial sensibilidade cheia de humor que marcou seus 12 anos de pontificado. Como quando viu a senhora que frequentava assiduamente a praça levando flores amarelas e disse: Brava!

Agora fica conosco sua memória, nossa saudade e o extenso, imenso legado por você deixado. O choque da notícia de sua partida foi sendo amenizado ao longo destes dias em que tentávamos fazer o luto da perda que insistia em misturar-se com a gratidão e o louvor a Deus pelo dom que foi você para esta querida Igreja. E também e não menos para um mundo que parece perder o rumo e a cada dia aprofunda o que você tão sabiamente nomeou como “uma Terceira Guerra Mundial em capítulos".

Eu o conheci ainda Bergoglio e em nossa amada Buenos Aires. Não ainda Francisco de Roma. Recordo-me de sua sisudez e seriedade, em nada parecidas com o sorriso permanente e carinhoso que marcou seu pontificado. Mas já então, em meio a comentários de todo tipo sobre sua pessoa, sentia-se destacar a admiração por sua austeridade.

O cardeal, que caminhava a pé ou tomava ônibus e metrô, para chegar de surpresa às comunidades pobres a fim de celebrar com os padres “villeros”. O prelado que telefonava a uma comunidade religiosa e chamava por uma certa irmã. E que, perguntado por sua identidade, respondia: Jorge. Quando a pergunta era insistente: Que Jorge? Respondia: Jorge Bergoglio, causando reboliço e agitação na comunidade de irmãs que não esperavam que seu arcebispo adotasse um estilo tão informal para comunicar-se com uma delas.

Assim aconteceu também quando de sua eleição à Sé de Pedro. Seus telefonemas, cartas escritas de punho e letra, mensagens personalizadas confirmavam a presença do Papa com sua marca mais característica: “cercania”, termo de língua castelhana que em português se traduz por proximidade. Mas que é mais que isso. Se trata de uma proximidade afetiva e carregada de carinho, livre e abertamente demonstrado.

Parece que você adotou desde o início o estilo que recomendou a todos para construir uma Igreja em saída. Como orientação para que isso acontecesse, recomendou algo inusitado, “Hagan lío”, ou seja, “Façam agitação, criem movimento”. A pessoa do Papa era a primeira a fazer esse movimento que desconcertava e surpreendia por sua simplicidade, proximidade, cálida afetividade. E novamente, humor denunciado pelos olhos brejeiros e o sorriso contagiante.

Assim fomos sendo conquistados e quando percebemos estávamos a cada dia pendentes da novidade que iria nos surpreender desta vez. Qual seria sua ideia, sua proposta, sua criatividade que chamaria a atenção do mundo e da Igreja para a boa notícia da qual era responsável? Entre encantados, alegres e estupefatos, fomos acompanhando e sendo ensinados.

Por exemplo: sua ida a Lampedusa e Lesbos e o inflamado discurso que aí você pronunciou, voltando a atenção do mundo inteiro para a tragédia dos migrantes e a trágica “globalização da indiferença”. Em seguida, lemos sua encíclica Laudato Sì, e nos vimos diante de um novo capítulo da Doutrina Social da Igreja, celebrada pelos fiéis e muito, intensamente, por intelectuais agnósticos e cientistas céticos. Aprendemos com você que tudo está interligado e nosso destino está atrelado ao destino de todos os outros e de toda a criação.

Sua comunicação com os jovens foi outra surpresa que mostrou ao vivo e em cores o que você queria dizer com “cultura do encontro”. No Rio de Janeiro em 2013 você veio e após burlar a segurança, andar de carro comum com os vidros abertos, entrar nas comunidades mais pobres e tomar café, levantou uma praia de Copacabana com milhões de jovens falando em português palavras de ordem que eles repetiam entusiasmados como “Botar água no feijão”. Depois, com um leve sorriso, disse ao jornalista que falava da rivalidade entre brasileiros e argentinos: “O papa é argentino, mas Deus é brasileiro”. Em Lisboa aconteceu algo parecido com a multidão de jovens gritando com você que a Igreja era de “todos, todos, todos”.

Nos últimos tempos, acompanhando sua doença, angustiados e esperançosos, nos pareceu que você ia conseguir outra boa surpresa. E quando apareceu em público no domingo de Páscoa, abraçando a praça cheia de gente, abençoando a todos e com enorme esforço sussurrando poucas palavras, acreditamos que sua convalescença progredia.

Nosso despertar na segunda-feira foi chocante e muito triste. Choramos e sentimos profundamente. Mas ao recordar tudo que foi feito, dito, vivido, padecido e entregue, entendemos que naquela Páscoa seu único desejo era abraçar-nos a todos. E conseguiu fazê-lo. Um gesto derradeiro de sua paternal ternura que consola o sentimento de orfandade que em todos nós passou a habitar.

Muita saudade, querido Francisco. Valorizaremos seu legado. Levantaremos alto suas bandeiras. E continuaremos, com o melhor de nossas forças, a Igreja em saída, pobre e para os pobres que você tanto desejou. Abençoe-nos sempre, não deixe de acompanhar-nos. Por aqui, não rezamos mais por você, mas com você, na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que você já vive em plenitude. Amém.

 

Maria Clara Bingemer, é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Santidade: chamado à humanidade”, pela Paulinas Editora, entre outros livros.

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