A expressão “oferecer a outra face” está no Evangelho segundo Mateus 5,38-39: “Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho, dente por dente’. Mas eu vos digo: não resistais a quem faz o mal! Ao contrário, se alguém te esbofetear na face direita, apresenta-lhe também a outra”.
Falando a seus discípulos – “Tendo visto as multidões, subiu à montanha. Tendo ele se sentado, aproximaram-se dele seus discípulos” (Mt 5,1) –, Jesus afirma que veio não para anular a Lei de Moisés, ou seja, a lei dos judeus, mas sim para cumpri-la em seu sentido mais profundo: “Não penseis que vim para anular a Lei ou os Profetas. Não vim para anular, mas para cumprir” (Mt 5,17).
Em sua maioria, os primeiros seguidores de Jesus, e o próprio Jesus, eram judeus e, como judeus, deviam pautar-se pela Lei de Moisés, em especial pelos cinco primeiros livros do Antigo Testamento. Três deles trazem a chamada Lei do Talião (do latim talis, “igual”), ou seja, a Lei da Reciprocidade, citada por Jesus: “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” (Ex 21,24); redação semelhante em Levítico 24,20 e em Deuteronômio 19,21.
Essa lei, apesar de parecer bastante dura aos olhos atuais, ajudou a evitar excessos na hora de alguém se vingar: ela não só fez com que a punição passasse a ser proporcional ao crime, como também obrigou que a vingança não fosse feita diretamente pelo ofendido, mas sim mediante um tribunal: “Caso se levante uma testemunha violenta contra um homem para acusá-lo de um crime, então os dois homens, que disputam, se colocarão de pé diante do Senhor, diante dos sacerdotes e dos juízes que oficiam naqueles dias.
Os juízes investigarão bem se a testemunha é falsa e se deu um falso testemunho contra seu irmão” (Dt 19,16-18). Com isso, o ofensor era punido sem excessos, o ofendido era vingado e as demais pessoas eram desencorajadas a cometer injustiças.
Mas Jesus, percebendo que a vingança só perpetua a violência, pede a seus discípulos uma atitude que vai além da retribuição: em vez de resistir ao mal com violência, recomenda oferecer a outra face, para que também o ofensor possa, arrependendo-se, salvar-se.
E não se salvar por fazer o mal, mas se salvar por, ao fazer o mal, dar-se conta, graças à atitude generosa do ofendido, de que o mal, a violência, não deve ser praticado. Trata-se de uma postura corajosa e confiante de não descer ao nível violento do agressor, mas de manter-se pacífico, apesar da violência sofrida: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra” (Mt 5,5), a fim de poder fazer com que o agressor reflita e reveja seus atos. E Jesus não apenas prega, mas sobretudo vive isso, em especial na cruz: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem!” (Lc 23,24).
Paulo, grande seguidor de Jesus, pede aos cristãos de Roma algo semelhante: “A ninguém pagueis o mal com mal! Tende em mente fazer o bem diante de todos os seres humanos! No que depender de vós, vivei em paz com todos! Não tomeis vingança por vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira divina, pois está escrito: ‘A mim a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor’ (Dt 32,35)!
Ao contrário: se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber, pois, agindo assim, amontoarás brasas incandescentes sobre sua cabeça. Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem!” (Rm 12,17-21).
Embora bastante exigente, oferecer a outra face é uma forma de vencer o mal com o bem.
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Anoar Provenzi é revisor literário de A Bíblia, da Paulinas Editora.