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A “sociedade líquida” retrata uma espécie de conceito cunhado pelo sociólogo e filósofo polonês Zigmunt Bauman. Amplamente divulgada em seus livros, escritos e entrevistas, a expressão demonstra à saciedade a que se reduziram determinadas referências historicamente tradicionais. E nem tão antigas!
Nos dias atuais e na esteira daquele autor, um olhar atento para o mundo do trabalho formal e informal, por uma parte, e para a complexidade das migrações, por outra, talvez nos leve a pensar numa “sociedade pulverizada”.
Emblemas vivos disso são, por exemplo, as organizações sindicais praticamente no mundo inteiro, bem como outros grupos, forças e associações do gênero. Com efeito, pulverizadas, fragmentadas e extremamente fragilizadas, não poucas organizações se batem com um individualismo e um atomismo exacerbados à máxima potência.
Mais do que a família, a comunidade e o partido, tropeçamos hoje com indivíduos autônomos e autômatos, átomos de uma sociedade que progressivamente se reduz a escombros.
A chamada “questão social”, ao lado do implícito ou explícito “contrato social”, parecem termos obsoletos, como que saíram de moda. A olhos vistos, sofrem desse estado de coisas os movimentos e as organizações sociais. O fato é que, em lugar de direitos socioeconômicos ou políticos, as pessoas buscam antes desejos, anseios, sonhos e lutas marcadamente individuais. São levadas a isso pelo marketing, a propaganda e a publicidade, cada vez mais inteligentes e estridentes.
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Por outro lado, mediante as telas e telinhas, impõe-se com força redobrada o mercado total, com a oferta quase diária de novos objetos de consumo, expostos e profusamente iluminados nas lojas e shopping-centers. Nesse cenário de encher a vista e esvaziar a conta bancária, a moda cria e recria o círculo vicioso da novidade e do descarte, devorando-se a si mesma.
Não sem razão, ganham fiéis e força os movimentos religiosos, que em geral caminham ao lado ou acima da hierarquia e da organização sacramental da Igreja. Em menor grau, vale o mesmo para as mais diversificadas denominações pentecostais.
Tanto naqueles como nestas, as pessoas encontram, contemporaneamente, mais calor humano na acolhida e menos burocracia nos rituais e sacramentos.
Num mundo pulverizado, reduzido a fragmentos imediatos e emocionais, ao invés de priorizar a pertença a uma determinada organização de culto, muitos preferem caminhar pelas próprias pernas.
Além disso, boa parte dos antigos católicos ou protestantes costumam circular livremente por diversas igrejas e denominações religiosas. Essa nova maneira de viver a própria fé instala uma espécie de “self service”. Cada um faz o seu “prato” de acordo com o gosto e o apetite do momento.
Em lugar de fiéis, emergem os consumidores do sagrado. Ora, consumir equivale a pagar; e quem paga, tem o direito de escolher onde se abastecer. O “nós” cede o posto ao “eu”, a mesa ao sofá.
Verifica-se, igualmente, uma série de grupos exóticos, sejam eles de culturas diferenciadas, sejam de caráter político-ideológico, tanto à direita como à esquerda, não obstante agruparem-se, exibem outras maneiras de fragmentação. Paradoxalmente, a própria atitude de pulverização leva à ânsia do pertencimento.
Poder-se-ia falar, como o fazem alguns estudiosos, das “tribos urbanas”, se isso não fosse de certa forma ofensivo para os povos originários. O fato é que os átomos se agrupam para fugir à multidão, mas, ao mesmo tempo, para construir uma bolha ou gueto cerrado, onde costumam criar sua própria linguagem, indumentária e costumes.
Não poucos desses grupos fazem questão de diferenciar-se através de algum tipo de camiseta ou uniforme. Este último, de certa forma, responde simultaneamente pela ansiedade do pertencimento e pela garantia do individualismo. Funciona como que um refúgio, casa, lar para quem recusa a sociedade, mas tem medo do anonimato. No mundo urbano, com efeito, multidão facilmente rima com solidão.
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Do que vimos até o momento, decorre que sindicatos, igrejas, associações, movimentos sociais, partidos, grupos e organizações símiles viram liquidificarem-se ou pulverizarem-se suas referências mais sólidas e tradicionais.
Convertidas em átomos individuais, as pessoas tendem a desqualificar a instituição, juntamente com seus instrumentos, canais e mecanismos de atuação. Sós ou em “forças” reduzidas e hermeticamente fechadas, preferem usar de suas energias para alcançar os próprios objetivos e metas.
Desconfiam seja das instituições, seja de seus intermediários: dirigentes, padres, pastores, lideranças, políticos. Nesse processo de mudança, desnecessário acrescentar o papel relevante das redes digitais. Ali, repete-se novamente a prática do “self service”, onde, em lugar de fatos e notícias reais, cada qual pode escolher boatos e narrativas virtuais para manter viva e ativa a própria bolha. A história se reduz a pó, a átomos isolados.
Pe. Alfredo J. Gonçalves é sacerdote da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos), cujo carisma é atuar com migrantes e refugiados. Durante 5 anos, foi assessor do Setor Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), depois Superior Provincial e Vigário Geral na Congregação supracitada. Hoje, exerce a função de vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). Recentemente lançou o livro Retratos da Metrópole, organizado pela Missão Paz.